domingo, 2 de março de 2008

Diário de um jovem silencioso e fraco

Do livro (um dos melhores que já li) de Artur da Távola:
Leilão do Mim.


Sou apenas um jovem fraco, medroso e sensível.
Caminho pela cidade com a cabeça cheia de loucura,
sofrendo a dor de viver num mundo assim. Amo
meu pobre pai, cuja vida é uma entrega doida e
doída ao sucesso que obteve. Ele fala grego e eu
sânscrito. Nem na marca da pasta de dentes nos
encontramos. Amo minha pobre mãe, macerada pela
vida vazia dos valores sólidos que a cercam: segurança.
Vai ver até que ela tem razão. Mas ter razão no meio
da gente doente com quem convive é renunciar à vida.
Será que minha mãe nunca desejou outro homem?
Será que meu pai nunca desejou outra mulher?
E ficam ali os dois, carregados de frustração e mágoa,
chamando de amor e fidelidade o preço que paga para viver.
Sou apenas um jovem frágil e silencioso. Gosto de poesia,
música, gente que fala baixo, pele encontrando pele e flores.
Outro dia li sobre um tipo de impregnação musical praticada
pelos esotéricos e achei que já faço isso há muito tempo. Repito,
sou frágil, silencioso e sensível; talvez por isso as pessoas tenham
medo de mim.
Muito medo de mim. Ou do que represento. Os amigos do meu pai
dizem aos filhos para não saírem comigo. Já namorei duas filhas de
amigos dele. Numa fiz um filho e ninguém sabe. Só ela, que odeia os
pais e, de vingança, não conta. Um dia, fui ver o garoto e senti amor por ele.
A mãe já namorava outro sujeito, um baterista machão que teve raiva
de mim e quis me dar porrada. Talvez eu seja mesmo meio louco, sem
condições de ser pai.
Um amigo meu, homossexual, foi preso. Uma violência. Vínhamos os
dois pela praia, felizes por poder sentir a brisa cheia de vida no calçadão
noturno de Copacabana, sem quase ninguém, pois todo mundo anda com
medo de assalto. Vínhamos, numa boa, dizendo alto um poema de Afonso
Henriques Neto, assim:

"Vomitaram trinta estrelas nesse charco
de líquidos corpos empoçados.
Nas tocas iluminadas os que se iniciam
na more fantasmas de si mesmos
fecundam rítmos e bússolas e fracassos.
Há desgosto e música na atmosfera branca
negra.
Vomitaram trinta estrelas talvez mais
mas o buraco se fecha.
Em silêncio algumas flores resistem
nas verdes gramas do sol."

Pois só porque meu amigo fazia o corpo ondulado no ritmo
dos versos, foi logo preso e quando viram que ele era homossexual
aí nem quiseram saber, encanaram o rapaz aos pescoços dentro
do camburão, e eu fui junto, desacatei o guarda, mandei que
prendesse as pessoas que estavam dentro dos apartamentos
fazendo planos pra enriquecer à custa dos outros no dia seguinte,
e entrei também no cacete e fui para a delegacia onde nos
colocaram numa cela imunda cjeia de marginais.
Aí eu pensei que os marginais iam entender a gente que
é marginal por opção, só que não entenderam e começaram a
humilhar meu amigo homossexual. Também pensei que ele ía se
sentir machucado com as humilhações, mas gostou e fez charme
para os marginais, pegou no pau de dois deles, fez os caras recuarem
encabulados, baixou a calça, tinha uma bunda feia e magra, mas se
requebrou todo e fiquei com raiva dele porque ele preferiu pessoas
que o humilhavam, mas que talvez o comessem, a mim que estimo
e prezo ele mas nunca o comeria, não por preconceito, é porque só
curto sexo cum mulher. Sim, fiquei triste, mas admiriei a coragem
dele, tentanto os caras, se roçando neses que começaram como
machões mas foram se encabulando feito crianças, principalmente
quando ele se roçava no pau deles e depois dizia:
- Tá vendo, tá vendo, aqui não tem homem pra mim. Ninguém
fica de pau duro. É tudo brocha. Tá tudo com medo de mim.
E depois que os caras ficaram na defensiva por causa disso, aí
foi dando uma raiva neles, aquele ódio da impotência por terem
sido sacaneados pela bicha, e deram muita porrada no meu amigo.
E sobrou pra mim que estava calado e com medo e comecei a gritar
por socorro, sou mais fraco e covarde que o meu amigo homossexual.
Aí veio o delegado, ou sei quem lá, e nos tirou dali e assim como entramos
fomos mandados embora, acho que ele viu que a gente não era bandido
e ficar ali só porque o cara da ronda tinha cisma com viado, ia acabar
sendo pior, podia dar em crime. Ah, se ele soubesse de quem o meu amigo
homossexual é filho, tremeria de medo.
Mas é tudo sempre assim. Sou apenas um jovem fraco, medroso e sensível
que não quer transar com esse mundo doente, cheio de maldade e ambição.
Fico quieto, na minha, observando. Não digo nada, não faço discurso, não
entro numa de protesto político. Achei graça daquele meu vizinho que veio
me cantar pra eu entrar no partido dele.
Ele agora fala mal de mim.
Como pouco. Quase não peço nada a meus pais, fiz até a conta, vivo com
menos de um salário mínimo (meu pai disse que é porque não pago casa e
comida, e nisso ele tem razão) e exatamente por não fazer nada, observo
o quanto incomodo, irrito as pessoas, parece que torno clara a loucura delas.
Elas gostam de pessoas que falam, que contestam verbalmente, que explicam,
que discutem com elas. Essa burguesia é gozada: só quer discutir. Até a parte
intelectual da burguesia que está numa posição de esquerda, mais generosa,
mesmo esse pessoal gosta mesmo é de discutir. Eu não gosto. Sou sensorial.
Gosto de ler, gosto de ver, gosto de ouvir. Se as pessoas interferissem menos
no mundo, ele seria melhor, daria para todos, haveria menos doenças, menos
violência, menos fedor humano. As pessoas fedem. Os ternos e gravatas fedem,
são uma espécie de uniforme da morte em vida.
Não sou bonito, não sou inteligente, não vou vencer na vida, não agrido as pessoas
com quem não concordo, não tenho iniciativa, não sou decidido, nada lidero, não
crio idéias originais, não sou de vanguarda, a ninguém ameaço, mas todos fogem
de mim. Estão com medo de mim! Quanto menos falo, mais ameaço. Nem para
amar faço força. Ouço falar em conquistar, cantar, paquerar, descolar. Nunca
fiz isso. Se sinto amor e tesão, olho para a mulher e ela já sabe. Se ela é limpa
de alma e clara de coração, vem comigo, naturalmente. Não lhe pergunto o nome,
a profissão, idade ou estado civil. Apenas sou muito terno, meigo quase como
uma menina, e gozo muito, sempre interessado no prazer dela também.
Sexo pra mim não é só gozar, é prazer da pele, da saliva, do calor do meu
e do outro corpo. Gosto do prazer prolongado, curtido lentamente. Não entendo
gente como os amigos do meu pai, que trepam sem amor; tenho a impressão de
que, na verdade, pessoas assim nunca saíram da fase de masturbação.
Comigo é diferente: amar é o mesmo que explorar um mapa desconhecido.
É preciso 'ciência' e calma.
As mulheres gostam muito. Sempre ficam minhas amigas e voltam
naturalmente. Aí, se estou a fim, a gente se ama de novo; se não estou,
digo com doçura e elas não se zangam.
Ouço falar que macho bom é o que só pensa em trepar, o que dá porrada,
e manda as mulheres abrirem as pernas e as trata como putas. Sou diferente:
faço muito carinho, me esfrego muito como um filho pequeno, sinto o cheiro
delas e elas sabem que eu saboreio, beijo muito, pareço um cachorrinho,
penetro com calma, vou sentido o que sinto e o que ela sente, a gente vai junto,
vai se adivinhando no ritmo, na dança, a gente vai sendo mesmo um do outro,
com muita doçura, nada de desempenho atlético, nada de cansaço, nada de
desespero, de coito angustiado. A gente goza muito, e depois fica amigo,
sem cobrança, sem pergunta, sem título de propriedade, sem ciúme,
sem pensar no antes e no depois.
Sou apenas um jovem silencioso e frágil. Pouco faço, nada peço, apenas tento
viver sem cansar nem machucar ninguém, e todos têm medo de mim.
No meu edifício, as senhoras me olham torto, os jovens executivos me
consideram um verme sem saber que tenho muita pena deles. O senhor do quarto
andar já deu indiretas, me chamando de sujo. Ele não sabe que salvei a filha dele,
casada com um sujeito que trabalhava em investimentos numa firma igual à do
meu pai e ganha muito dinheiro, o coroa não sabe que salvei a filha dele do
suicídio. Uma tarde, nos encontramos. Todos estavam fora, coisa considerada
normal em nosso mundo: os chefes de família saem para o trabalho; só os velhos,
as crianças, as donas-de-casa, os marginais sabem o que ocorre no interior dos
apartamentos e das casas, durante o dia. Como são tristes as mulheres dos
homens que só fazem trabalhar!
Ela subia no elevador comigo, a cabeça baixa. Só ela e eu ali dentro.
Nunca me cumprimentou, indiferente a mim. Mas não pude deixar
de olhar bem no rosto dela e dizer:
- A senhora pode não gostar de mim, mas sou obrigado a lhe dizer
que está desesperada e vou ficar do seu lado para impedi-la de cometer
uma loucura. Está louca e não sabe que pode ficar boa.
Ela nada disse, parecia o fim de uma longa conversa. Chorou e pedi
que viesse comigo. Concordou. Não pensou no que poderiam comentar
se a vissem assim, na minha companhia, entrando no meu apartamento.
Não demonstrou medo. Nunca traíra o marido, e eu a via sempre sozinha.
E agora, ali, comigo, que parecia uma antípoda para ela (que engano!), eu,
queo pai dela considerava um vagabundo a mais, apesar de 'filho de boa
família'.
Eu nada perguntei. Nem por que chorava. Tenho tempo. Sou dono do
meu tempo. Esperei, portanto, que ela parasse de chorar. Então, disse:
- Agora não é preciso falar mais nada. Você já viu tudo sozinha. Sem
palavras ou idéias. Apenas sendo você própria e ganhando a minha
compreensão. Você acaba de descobrir a vida; você vai ser outra pessoa.
Ela recostou a cabeça no meu ombro. E nos fizemos muito carinho.
Carinho de pessoas que se revelam inteiras, sem medo de suas carências.
Nos beijamos, nos abraçamos, nos entregamos ao amor, ela saindo da
morte para a vida, e eu me sentindo, de fato, como se a estivesse salvando -
eu, jovem, frágil e sensível, silencioso, que não gosta de fazer o que a maioria
faz. Não contesto, não protesto, não ameaço, não cobro nada a ninguém.
Por que todos têm medo de mim? Será porque constatam que faço
e sou tudo que falta a eles?
Há seis meses, meu avô, pai de meu pobre pai tão rico, pouco antes de
morrer, chamou um a um dos filhos e netos. Me disse que morria preocupado,
pois não sabia o que seria de mim, o que seria de meu futuro. Docemente,
respondi: "Quem precisa de futuro é você, vovô, que está partindo pro
desconhecido. Só precisa de futuro quem não tem o presente. Eu só tenho
o presente". Minha mãe se horrorizou com minha indiferença diante da
morte do velho sogro, homem tão bom. Não era indiferença. Ela é que
estava fazendo a morte dele ficar horrível. Eu simplesmente encarava
a morte: um estado talvez melhor do que este no qual gente como minha
mãe e meu pai vive morrendo, sempre preocupados com o que deixaram
ou deixarão de ter, enquanto eu, silencioso e frágil, terei os filhos que quiser,
levarei muita porrada das polícias da Vida por ser amigo de um homossexual
e amarei as mulheres que chegarem perto de mim ganindo sua solidão.
Eu, que não possuo nada, sem nenhuma ambição, que vivo apenas para
viver...